sábado, 25 de fevereiro de 2023

Interior

Eu sonhei que escrevia sobre uma garota. 

Era uma garota que eu não conheço. Não sei seu nome ou o seu rosto. Não sei como se veste ou o que gosta de ouvir. Eu também não me lembro exatamente o que escrevi. Entreguei o texto à uma professora que me deu um nove e me disse:

- Muito bem, Mikhail. 

Não posso dizer também se escrevi minhas percepções sobre a garota ou se ela havia me confidenciado algo.

Eu contei como ela se sentia sufocada nos últimos dias (tempos). Não se sentia sufocada pelos outros, mas por si mesma. Era mais como se seu próprio corpo a sufocasse. Sentia a garganta fechada, como se suas próprias mãos a estivessem enforcando. Mas não lhe faltava o ar, faltava força para expulsar algumas palavras. E gritar. Gritar a plenos pulmões. Gritar qualquer coisa, apenas para aliviar o peso de algum fardo.

Não me parece que ela carregava algo obscuro. Um segredo que pudesse acabar com sua vida (ou de alguém). Não. Acho que no fim se tratava de um acúmulo. O simples acúmulo de se viver. De se viver dia após dia na indiferença que a vida nos reserva. Um dia sem alguém perguntar como ela estava. Mais um outro dia sem sequer a olharem, seja como ser humano ou qualquer outra coisa. Já não se lembrava da última vez que a olharam com ternura. Se ela se lembrava do toque aveludado dos lábios de alguém que amara? Se esquecera da doçura do amor há tempos. Ou do leve enjoo que as borboletas apaixonadas lhe causavam.

Mas se lembrava diariamente das mãos em sua garganta e de seu espírito alvoroçado, que se debatia constantemente na esperança de criar um oportunidade em que pudesse finalmente gritar. Talvez esse ciclo infinito de dias inteiros sufocada a tenha feito ser mais reativa. Sempre alerta aos sinais e cansada demais para libertar sua fala.  

Em alguns dias sente como se o mundo desmoronasse sob sua cabeça, tal qual uma tragédia vinda das águas de março que fecham o verão. Em outros dias, sentia a infinita inquietude do seu ser. Sentia como se estivesse sozinha, deitada em um barquinho que flutuava em águas verdes bem cristalinas. Quase podia ouvir o silêncio sussurrar as palavras que tanto quer dizer.

Eu me vejo na garota. Sinto o seu sufoco e partilho as palavras que não saem. A vontade do silêncio. A falta dos meus olhos me olharem com ternura. A fraqueza de não deixar o caos gritar.